quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Resenha do livro Escrevendo pela nova ortografia, de José Carlos de Azeredo

Resenha do livro Escrevendo pela nova ortografia, de José Carlos de Azeredo.

A proposta desse livro é apresentar ao leitor questões do Novo Acordo Ortográfico de 1990 firmado entre Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe, Timor-Leste e Brasil. Terá início em 2009 para documentos oficiais e para a mídia. Sua implantação no ensino público será em 2010, e até 2012 para todas as séries.
A idéia de se fazer uma ortografia unificada teve início em 1986, no Rio de Janeiro, onde aconteceu o Encontro para a Unificação Ortográfica da Língua Portuguesa, já que o português era o único idioma do lado ocidental a ter duas grafias. Desse Encontro gerou-se um documento contendo resoluções essenciais para o projeto de unificação da ortografia, com a aprovação da Academia de Ciências de Lisboa e da Academia Brasileira de Letras. Azeredo, pensador da filosofia da língua portuguesa e autor de gramáticas, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e ex-professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro vem através dessa publicação esclarecer futuras dúvidas daqueles que fazem uso da escrita em língua portuguesa, de maneira simples, clara e objetiva. O texto do livro resenhado traz um resumo simplificado do Acordo, de uma forma sucinta e prática para que os leitores brasileiros possam consultá-lo sem dificuldades, observando as alterações introduzidas pelas novas regras. Traz também o texto original para aqueles que desejarem conhecer na sua totalidade o Acordo de 1990. Um artifício bastante contundente é o uso de um quadro em que os leitores poderão depreender como era a ortografia antes e depois do Acordo. Nesse quadro há um comentário em que se lê: mantido, alterado, dupla ortografia ou novo, conforme a especificidade do caso.
O livro presenteia o leitor com fatos extras que justificam a evolução, o prestígio e a importância da escrita do português diante da História. Faz menção à sincronia (estudo da língua num determinado momento da fala) e à diacronia (estudo da língua através do tempo histórico). O português teve origem no latim, antiga língua falada no Lácio, região central da Península Itálica. Infelizmente não do latim clássico, falado pelos grandes escritores romanos e latinos, e sim do latim popular falado pelas tropas invasoras, surgindo assim, dialetos chamados de Romances ou Romanços. Com a queda do Império Romano, os Romanços deram origem às línguas neolatinas ou românicas: italiano, francês, provençal, espanhol, português, dentre outras. O marco da evolução histórica do português se faz quando da elaboração da primeira gramática do português (Gramática da Linguagem Portuguesa) de Fernão de Oliveira, em 1536.
Antes de entrar no Acordo propriamente dito, há duas páginas que pincelam a vertente da evolução da ortografia, quando a preocupação inicial era com a pronúncia da palavra. O Renascimento trouxe mais uma nova influência para a evolução do português. É dessa época as palavras escritas com rh, th e ph, influenciadas pela grafia do latim, o que dificultou a grafia de muitas palavras.
O autor faz uma explanação rápida e muito feliz acerca da função sociocultural de uma língua, evidenciando a língua como fator principal para a difusão da cultura, seja no âmbito da ciência, da educação, da literatura, da religião etc. O valor maior vem por meio da língua escrita, que expande o conhecimento e a informação através dos meios de comunicação, tais como jornais, revistas, cartazes, leis e livros. Obviamente que haverá algumas diferenças na maneira de se escrever, sejam elas de cunho regional, individual ou profissional. Porém, a escrita deve ser única, ou seja, a palavra deve ter a mesma grafia dicionarizada. A ortografia do português é essencialmente fonológica, conservando vestígios etimológicos. Para exemplificar a veracidade do que está sendo dito toma-se a nível de ilustração o termo "duas grafias". Isso não significa dizer que no Brasil pode-se escrever fêmur/fémur. Esse Acordo vem ratificar que cada país continuará escrevendo tal palavra da mesma forma que está sendo escrita na atualidade, isto é, falando-se em português do Brasil escreve-se fêmur, e em português de Portugal fémur. Outro adentro que muito se comenta são as palavras que perderam o trema. O acento que marca a tonicidade da sílaba caiu, porém a forma fonológica das palavras que fazem uso desse acento continuará valendo. Haja vista a grande vedete desse Acordo, que é a supressão do trema em palavras portuguesas ou aportuguesadas: linguiça, tranquilo, delinquir, cuja pronúncia nada sofrerá, para a satisfação dos brasileiros.
A idéia de unificação da ortografia praticada no Brasil e em Portugal teve amadurecimento a partir do foneticista português Gonçalves Viana, devido ao seu trabalho histórico da ortografia portuguesa ao longo do século XX. O entendimento entre os dois países se deu no início de 1924, terminando em 1931 com a adoção pelo Brasil da ortografia simplificada de Gonçalves Viana. Atualmente a norma que o Brasil segue é a do Acordo de 1945, e somente em 1971 que foram incorporadas algumas alterações propostas naquela data. Os novos entendimentos aconteceram em 1990, e formalizados em agosto de 2004. Notam-se semelhanças existentes entre as ortografias portuguesa e brasileira, mesmo não havendo uniformidade entre elas, haja vista que cada país tem as suas próprias normas. Os países envolvidos no Acordo sabem da importância que tem uma ortografia comum, e que favorece o prestígio internacional, e acaba com as dificuldades de caráter lingüístico, político e pedagógico.
O novo Acordo Ortográfico é divido em 21 bases, iniciando-se pelo alfabeto e pela grafia de nomes próprios estrangeiros, passando pelo uso do h, ditongos, acentuação gráfica, uso do trema e do hífen, chegando à divisão silábica e culminando na grafia de assinaturas e firmas, dentre outras.
O alfabeto teve o acréscimo de mais três letras, k, w, y, passando de vinte e três para vinte e seis letras. Os leitores brasileiros sentirão falta do acento em palavras tão comuns do vocabulário do dia-a-dia, pois os ditongos abertos éi, eu, oi, somente incidirão acento agudo em final de sílaba ou em palavras proparoxítonas, não mais em outras posições dentro da palavra, como é o caso de teteia, jiboia, heroico, estreia, paranoico. Outra novidade é a não sinalização do acento circunflexo nas palavras paroxítonas terminadas em oo (hiato): enjoo, voo, assim como não se acentuam mais as palavras homógrafas: para (verbo), para (preposição), pelo (verbo), pelo (substantivo). O acento também caiu para as palavras paroxítonas cujas vogais tônicas i e u são precedidas de ditongo decrescente: feiura, baiuca.
A regra também mudou para as 3as pessoas do plural do presente do indicativo ou do subjuntivo dos verbos crer, dar, ler, ver e seus derivados: creem, deem, leem, veem, releem. Nota-se, no entanto, que os verbos ter, manter, reter conservam o acento: têm, mantêm, retêm.
Para aqueles já acostumados a escrever certas palavras sem hífen haverá a necessidade de readaptação, pois as palavras compostas que têm o primeiro elemento bem ou mal e o segundo começar por vogal ou h obrigatoriamente deverão ter hífen: bem-humorado, mal-habituado, mal-estar.
O novo Acordo Ortográfico escrito e organizado por Azeredo traz exemplos vivos dessa mudança, mostrando ao leitor tudo que aconteceu antes e depois de 1990, e o presenteando um quadros comparativos, auto-explicativos que conseguem dissipar qualquer dúvida que o mesmo possa vir a ter. Esse livro funciona como um professor de bolso, esclarecer e pronto para ser consultado a qualquer momento, quando se julgar necessário.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Clarice Lispector

Se ela estivesse viva faria no próximo dia 10 de dezembro 88 anos. Há cerca de 2 ou 3meses houve no CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil) uma exposição muito interessante sobre a Carice Lispector. Nas paredes brancas frases com letras vazadas brilhavam devido à luz intensa que escorriam pelos vazios deixados pelas letras. Em cada parede frases e mais frases de Clarice. Muitas delas conhecidas, outras nem tanto. O que chama atenção, pelo menos das crianças que lá estiveram, foi uma enorme barata. E antes de chegar a esse bicho horrível e nojento, algumas frases minimizavam o horror que estava próximo. Apenas poesia. Os salões sustentavam fotos enormes da escritora em fases diferentes da vida. Algumas frases continham letras bem pequenas e somente poderiam ser lidas de perto por aqueles que realmente amam Clarice. Elas aguçavam a curiosidade dos amantes de Clarice. Em outro salão um telão projetava uma entrevista com a escritora. Dois fatos não poderiam passar despercebidos: o cigarro sempre aceso em sua mão e a frase da qual não se esquece, proferida durante a entrevista "não me considero uma profissional". A parte final da exposição era enormemente interessante. Paredes repletas de gavetas contendo documentos pessoais, bilhetes, rascunhos, cartas aos amigos, esboços de contos, poesias, livros, enfim, tudo que nos faz vasculhar para conhecer de fato quem foi essa mulher maravilhosa entitulada Clarice Lispector. As palavras a seguir, denotam Clarice por Clarice:
“Outra coisa que não parece ser entendida pelos outros é quando me chamam de intelectual e eu digo que não sou. De novo, não se trata de modéstia e sim de uma realidade que nem de longe me fere. Ser intelectual é usar sobretudo a inteligência, o que eu não faço: uso é a intuição, o instinto. Ser intelectual é também ter cultura, e eu sou tão má leitora que agora já sem pudor, digo que não tenho mesmo cultura. Nem sequer li as obras importantes da humanidade.
[...] Literata também não sou porque não tornei o fato de escrever livros ‘uma profissão’, nem uma ‘carreira’. Escrevi-os só quando espontaneamente me vieram, e só quando eu realmente quis. Sou uma amadora?
O que sou então? Sou uma pessoa que tem um coração que por vezes percebe, sou uma pessoa que pretendeu pôr em palavras um mundo ininteligível e um mundo impalpável. Sobretudo uma pessoa cujo coração bate de alegria levíssima quando consegue em uma frase dizer alguma coisa sobre a vida humana ou animal.”

Resenha da Crônica jornalística: um gênero ambíguo de texto

HARTUIQUE, Deise Luci Luiz. Crônica jornalística: um gênero ambíguo de texto. In PAULIUKONIS, Maria Aparecida Lino e GAVAZZI, Sigrid (org). Texto e Discurso. Rio de Janeiro: Lucena, 2003.


A autora Deise Hartuique expõe em seu trabalho “crônica jornalística: um gênero ambíguo de texto” fatos que deram origem à nossa crônica atual. Ela começa dizendo que a crônica é um gênero de texto que aborda diversos assuntos, cuja função inicial era a histórico-narrativa. Como exemplo cita Fernão Lopes, cronista-mor de Portugal, que teve grande destaque ao escrever histórias desse país. Posteriormente, esse gênero passou a ganhar caráter descritivo, sobretudo em virtude das deslumbrantes viagens realizadas pelos autores da época.
Hartuique cita trechos do livro “Crônica: história, teoria e prática, de Ilka Brunhilde Laurito”, em que Laurito afirma que somente no século XIX a crônica passou a ter a roupagem que tem nos dias de hoje. Acrescenta ainda que, inicialmente, a crônica nasceu de um filão, iniciado na França, vindo para o Brasil, onde teve grande êxito. Esse filão, chamado folhetim, cujo teor principal era entreter os leitores, devido às grandes más notícias que circulavam nos jornais - e ainda circulam - era um espaço livre no rodapé do jornal, que devido ao grande sucesso passou a ser um ímã para atrair leitores.
A partir do século XX, a crônica passou a ser mais abrangente, ou seja, trata dos mais variados assuntos, podendo ter cunho político, esportivo, literário etc, e que vem sempre em jornais e revistas. Tem como característica uma linguagem clara, simples, de fácil entendimento, cuja finalidade é apresentar um diálogo, uma interação entre o autor e o leitor. Apesar de a crônica ter a pretensão de ser um texto fácil, não significa que haja um descompromisso do autor no desempenho da sua escrita, como afirma Laurito (1993, 27 e 28), pois exige muito talento ao escrever, em razão de haver um leque de assuntos a serem explorados.
No artigo resenhado, Deise presenteia os leitores com a magnífica crônica “Nascido em 4 de julho”, de Marcos Caetano. O tema central - como em toda crônica há uma abordagem de um assunto singular - é a respeito de futebol, porém Caetano aproveita para abordar fatos de ordem social, como a questão das meninas abandonadas no Nepal.
Escritores de crônicas têm o privilégio de não se prenderem a somente uma vertente; eles têm o poder de ser versáteis: poetas, filósofos, místicos, contadores de casos, enfim, podem extravasar seu lado excêntrico e subjetivo, conforme afirma Flora Bender (1993: 53). Por ser a crônica um texto versátil, ele é ambíguo, em decorrência de reunir uma grande mistura de gêneros e discursos, que variam entre o épico, o lírico ou o dramático, e ter a forma textual narrativa, descritiva, enunciativa ou argumentativa. Tudo vai depender do autor, da sua proposta de texto, da sua vivência de mundo, e da sua intenção diante do leitor: comover, informar, interagir, normatizar etc. Como acrescenta Eduardo Portella (1979: 53 e 54 apud Bender e Laurito 1993:53), a estrutura da crônica é uma desestrutura; a ambigüidade é a sua lei.
Voltando à crônica jornalística de Marcos Caetano, pode-se concluir que ela contém muitas passagens que evidenciam com nitidez as características desse tipo de texto, como a narrativa em primeira pessoa do singular, linguagem fácil, foco principal em um assunto específico, apesar de haver uma diversidade de fatos correlatos, e sobretudo a interação, a conversa que existe entre o leitor e o autor, sua característica essencial.
Clarice Lispector, em entrevista ao Jornal do Brasil, em 18 de agosto de 1973, esclarece de forma bastante contundente as marcas de suas crônicas, que são, por sua vez, um reflexo desse gênero de texto em geral: “Na crônica, acho que coloco uma espécie de mundo através de uma espécie de mim. O leitor quer, no jornal, encontrar um pouso, uma conversa”.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Nova Ortografia

O Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa firmado ente Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe, Timor-Leste e Brasil passa a vigorar a partir de 2009 para documentos oficiais e para a mídia. A implementação no ensino público será em 2010 e até 2012 as novas regras serão adotadas para todas as séries. São dois os objetivos básicos desse Acordo: o primeiro é fixar e restringir as diferenças de escrita entre os falantes da língua; o segundo é criar uma comunidade constituída de um grupo linguistico expressivo, cujo prestígio seja ampliado aos organismos internacionais. Ele trata de várias questões, como acentuação, trema, hifens, uso do "h", grafia de nomes próprios estrageiros, dentre outras. E pra começar o nosso alfabeto ganhou mais três letras: k, w,y. Passando de 23 a 26 letras.
Qualquer língua em uso está sujeita a variações fonéticas, morfológicas, sintáticas e vocabulares. Assim, é comum que haja diferenças entre o falar do Brasil, da Europa e da África. Esse novo acordo visa minimizar as dificuldades de natureza política e pedagógica. Em certos casos haverá a dupla grafia, em virtude das diferenças de normas cultas de pronúncia do português, ou seja, privilegia o caráter fonética, e não etimológico, o que justifica a existência de grafias duplas e a supressão das consoantes mudas ou nao articuladas. Temos como exemplos as seguintes palavras que serão modificadas segundo o novo acordo ortográfico: teteia, estreia, jiboia, heroico (ditongos abertos éi, éu, ói são grafados com acento agudo somente em sílaba final e em sílaba tônica das palavras proparoxítonas, e não em outras posições); cai o acento circunflexo nas 3as pessoas do plural do presente do indicativo ou do subjuntivo dos verbos crer, dar, ler, ver: creem, deem, leem, veem; não se emprega o acento circunflexo nas paroxítonas terminadas em oo (hiato): enjoo, voo; não se acentuam palavras paroxítonas cujas vogais tônicas i e u são precedidas de ditongo decrescente: feiura, baiuca; o trema é totalmente eliminas nas palavras portuguesas ou aportuguesadas: cinquenta, linguiça, tranquilo; o hífen aborda várias regras: paraquedas, mandachuva, batata-inglesa, bem-humorado, bem-apanhado, mal-habituado, mal-estar, além-túmulo, recém-nascido, sem-teto. Agora é só consultar o Acordo Ortográfico na íntegra para saber mais.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

sábado, 18 de outubro de 2008

Machado de Assis centenário






Machado de Assis
contos
Publicado originalmente em Gazeta de Notícias 1884
fg(174,'Hamlet')
Hamlet observa a
fg(193,'Horácio')
Horácio que há mais coisas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras.
— Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: “A senhora gosta de uma pessoa...” Confessei que sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinou-as, e no fim declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era verdade...
— Errou! interrompeu Camilo, rindo.
— Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria...
Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe queria muito, que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso, quando tivesse algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a; disse-lhe que era imprudente andar por essas casas. Vilela podia sabê-lo, e depois...
— Qual saber! tive muita cautela, ao entrar na casa.
— Onde é a casa?
— Aqui perto, na
fl('guarda','Rua da Guarda Velha')
Rua da Guarda Velha; não passava ninguém nessa ocasião. Descansa; eu não sou maluca.
Camilo riu outra vez:
— Tu crês deveras nessas coisas? perguntou-lhe.
Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muita coisa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava, paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova é que ela agora estava tranqüila e satisfeita.
Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se. Não queria arrancar-lhe as ilusões. Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal inteiro de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram. No dia em que deixou cair toda essa vegetação parasita, e ficou só o tronco da religião, ele, como tivesse recebido da mãe ambos os ensinos, envolveu-os na mesma dúvida, e logo depois em uma só negação total. Camilo não acreditava em nada. Por quê? Não poderia dizê-lo, não possuía um só argumento; limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque negar é ainda afirmar, e ele não formulava a incredulidade; diante do mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi andando.
Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser amada; Camilo, não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr às cartomantes, e, por mais que a repreendesse, não podia deixar de sentir-se lisonjeado. A casa do encontro era na antiga Rua dos
fl('barbonos','Barbonos')
Barbonos, onde morava uma comprovinciana de Rita. Esta desceu pela Rua das
fl('mangueiras','Mangueiras')
Mangueiras, na direção de Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da Guarda Velha, olhando de passagem para a casa da cartomante.
Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura e nenhuma explicação das origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu a carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai, que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público. No princípio de 1869, voltou Vilela da província, onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo.
— É o senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como meu marido é seu amigo; falava sempre do senhor.
Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras.
Depois, Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela não desmentia as cartas do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Vilela vinte e nove e Camilo vinte e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o parecer mais velho que a mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática. Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos. Nem experiência, nem intuição.
Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a mãe de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário, Rita tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor.
Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava de passar as horas ao lado dela; era a sua enfermeira moral, quase uma irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Odor di femmina: eis o que ele aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites; — ela mal — ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as coisas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam muita vez os dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de presente, e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi então que ele pôde ler no próprio coração; não conseguia arrancar os olhos do bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos, deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de
fg(20,'Apolo')
Apolo. Assim é o homem, assim são as coisas que o cercam.
Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita, como uma serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura; mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos, sem padecer nada mais que algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro. A confiança e estima de Vilela continuavam a ser as mesmas.
Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral e pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e, para desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Vilela. Este notou-lhe as ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz. Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso um pouco de amor-próprio, uma intenção de diminuir os obséquios do marido para tornar menos dura a aleivosia do ato.
Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante para consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos que a cartomante restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz repreendeu-a por ter feito o que fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou três cartas anônimas tão apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude, mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras palavras mal compostas, formulou este pensamento: — a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo.
Nem por isso Camilo ficou mais sossegado; temia que o anônimo fosse ter com Vilela, e a catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que era possível.
— Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com as das cartas que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a...
Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Vilela começou a mostrar-se sombrio, falando pouco, como desconfiado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao outro, e sobre isso deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tornar à casa deles, tatear o marido, e pode ser até que lhe ouvisse a confidência de algum negócio particular. Camilo divergia; aparecer depois de tantos meses era confirmar a suspeita ou denúncia. Mais valia acautelarem-se, sacrificando-se por algumas semanas. Combinaram os meios de se corresponderem, em caso de necessidade, e separaram-se com lágrimas.
No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Vilela: “Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora.” Era mais de meio-dia. Camilo saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural chamá-lo ao escritório; por que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a letra, fosse realidade ou ilusão, afigurou-se-lhe trêmula. Ele combinou todas essas coisas com a notícia da véspera.
— Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora — repetia ele com os olhos no papel.
Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e lacrimosa, Vilela indignado, pegando da pena e escrevendo o bilhete, certo de que ele acudiria, e esperando-o para matá-lo. Camilo estremeceu, tinha medo: depois sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a idéia de recuar, e foi andando. De caminho, lembrou-se de ir a casa; podia achar algum recado de Rita, que lhe explicasse tudo. Não achou nada, nem ninguém. Voltou à rua, e a idéia de estarem descobertos parecia-lhe cada vez mais verossímil; era natural uma denúncia anônima, até da própria pessoa que o ameaçara antes; podia ser que Vilela conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas visitas, sem motivo aparente, apenas com um pretexto fútil, viria confirmar o resto.
Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras estavam decoradas, diante dos olhos, fixas; ou então — o que era ainda pior — eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Vilela. “Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora.” Ditas assim, pela voz do outro, tinham um tom de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma hora da tarde. A comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que se iria passar, que chegou a crê-lo e vê-lo. Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em ir armado, considerando que, se nada houvesse, nada perdia, e a precaução era útil. Logo depois rejeitava a idéia, vexado de si mesmo, e seguia, picando o passo, na direção do Largo da Carioca, para entrar num tílburi. Chegou, entrou e mandou seguir a trote largo.
— Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim...
Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O tempo voava, e ele não tardaria a entestar com o perigo. Quase no fim da Rua da Guarda Velha, o tílburi teve de parar; a rua estava atravancada com uma carroça, que caíra. Camilo, em si mesmo, estimou o obstáculo, e esperou. No fim de cinco minutos, reparou que ao lado, à esquerda, ao pé do tílburi, ficava a casa da cartomante, a quem Rita consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer na lição das cartas. Olhou, viu as janelas fechadas, quando todas as outras estavam abertas e pejadas de curiosos do incidente da rua. Dir-se-ia a morada do indiferente Destino.
Camilo reclinou-se no tílburi, para não ver nada. A agitação dele era grande, extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns fantasmas de outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O cocheiro propôs-lhe voltar à primeira travessa, e ir por outro caminho; ele respondeu que não, que esperasse. E inclinava-se para fitar a casa... Depois fez um gesto incrédulo: era a idéia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com vastas asas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no cérebro; mas daí a pouco moveu outra vez as asas, mais perto, fazendo uns giros concêntricos... Na rua, gritavam os homens, safando a carroça:
— Anda! agora! empurra! vá! vá!
Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Camilo fechava os olhos, pensava em outras coisas; mas a voz do marido sussurrava-lhe às orelhas as palavras da carta: “Vem, já, já...” E ele via as contorções do drama e tremia. A casa olhava para ele. As pernas queriam descer e entrar... Camilo achou-se diante de um longo véu opaco... pensou rapidamente no inexplicável de tantas coisas. A voz da mãe repetia-lhe uma porção de casos extraordinários; e a mesma frase do príncipe de Dinamarca reboava-lhe dentro: “Há mais coisas no céu e na terra do que sonha a filosofia...” Que perdia ele, se...?
Deu por si na calçada, ao pé da porta; disse ao cocheiro que esperasse, e rápido enfiou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degraus comidos dos pés, o corrimão pegajoso; mas ele não viu nem sentiu nada. Trepou e bateu. Não aparecendo ninguém, teve idéia de descer; mas era tarde, a curiosidade fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas, três pancadas. Veio uma mulher; era a cartomante. Camilo disse que ia consultá-la, ela fê-lo entrar. Dali subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que a primeira e mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal alumiada por uma janela, que dava para o telhado dos fundos. Velhos trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava do que destruía o prestígio.
A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas e enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, não de rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana, morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos. Voltou três cartas sobre a mesa, e disse-lhe:
— Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande susto...
Camilo, maravilhado, fez um gesto afirmativo.
— E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma coisa ou não...
— A mim e a ela, explicou vivamente ele.
A cartomante não sorriu; disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez das cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas descuradas; baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas, três vezes; depois começou a estendê-las. Camilo tinha os olhos nela, curioso e ansioso.
— As cartas dizem-me...
Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declarou-lhe que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro; ele, o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era indispensável muita cautela; ferviam invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de Rita... Camilo estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as na gaveta.
— A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendendo a mão por cima da mesa e apertando a da cartomante.
Esta levantou-se, rindo.
— Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato...
E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu, como se fosse a mão da própria
fg(364,'sibila')
sibila, e levantou-se também. A cartomante foi à cômoda, sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho destas, começou a despencá-las e comê-las, mostrando duas fileiras de dentes que desmentiam as unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha um ar particular. Camilo, ansioso por sair, não sabia como pagasse; ignorava o preço.
— Passas custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira. Quantas quer mandar buscar?
— Pergunte ao seu coração, respondeu ela.
Camilo tirou uma nota de dez mil-réis, e deu-lha. Os olhos da cartomante fuzilaram. O preço usual era dois mil-réis.
— Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do senhor. Vá, vá, tranqüilo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu...
A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia com ele, falando, com um leve sotaque. Camilo despediu-se dela embaixo, e desceu a escada que levava à rua, enquanto a cartomante, alegre com a paga, tornava acima, cantarolando uma barcarola. Camilo achou o tílburi esperando; a rua estava livre. Entrou e seguiu a trote largo.
Tudo lhe parecia agora melhor, as outras coisas traziam outro aspecto, o céu estava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou pueris; recordou os termos da carta de Vilela e reconheceu que eram íntimos e familiares. Onde é que ele lhe descobrira a ameaça? Advertiu também que eram urgentes, e que fizera mal em demorar-se tanto; podia ser algum negócio grave e gravíssimo.
— Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro.
E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer coisa; parece que formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à antiga assiduidade... De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras da cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, a existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto? O presente que se ignora vale o futuro. Era assim, lentas e contínuas, que as velhas crenças do rapaz iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o com as unhas de ferro. Às vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas a mulher, as cartas, as palavras secas e afirmativas, a exortação: — Vá, vá, ragazzo innamorato; e no fim, ao longe, a barcarola da despedida, lenta e graciosa, tais eram os elementos recentes, que formavam, com os antigos, uma fé nova e vivaz.
A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas felizes de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glória, Camilo olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço infinito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável.
Daí a pouco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou a porta de ferro do jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e mal teve tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe Vilela.
— Desculpa, não pude vir mais cedo; que há?
Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror: — ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e ensangüentada. Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão.
FIM de A cartomante